Não será apenas por sua natural elegância, pela voz segura e o português muito bem pronunciados que o cantor Augusto Martins nos lembrará um inglês daqueles que Nelson Rodrigues via na figura do escritor Antônio Callado (“o único inglês da vida real”). Augusto talvez nos lembre “o inglês utópico” de Nelson, aquele que Londres jamais vira até a chegada por lá de Callado para trabalhar na BBC, porque na verdade ele trata a canção, e mais especificamente a canção brasileira, como um verdadeiro ator shakespeariano aborda as linhas do bardo: com aquele misto de respeito estrito ao que está escrito e a liberdade de quem conhece tanto aquilo que é capaz de transformar tudo com a sua rítmica própria, com as suas nuances, sua maneira muito pessoal de dizer os versos, com a sua interpretação enfim, personalíssima e fiel à tradição ao mesmo tempo.
Na aparente singeleza deste seu “Piano, Voz e Jobim”, o que Augusto nos propõe é isso: um passeio jobiniano por Tom Jobim, mas pelo filtro de sua maneira muito própria (sempre respeitosa e sutilmente inovadora) de recriar as canções, tanto faz se clássicos ou lados B´s.
Senão ouçam, à guisa de exemplo, logo na primeira faixa um clássico como “Estrada do sol” totalmente reconstruído ritmicamente e com ideias novas mesmo nos sutis improvisos vocais e no piano, mas sem nenhuma perda de beleza e fluência desta obra-prima de Tom e Dolores Duran que se caracteriza justamente pela simplicidade moderna – ou seja, sem efeitos, direta, coloquial – de música e letra.
Nesse caso, a comparação com um ator shakespeariano é clara: Augusto encara um “Estrada do sol” depois de Agostinho dos Santos como, sei lá, um sir Ian McKellen diante de “Hamlet” depois de Laurence Olivier, fiel e rebelde, de encantar e fazer jus aos criadores originais.
Para tal empreitada nada modesta, Augusto convocou um músico talvez com as mesmas características, Paulo Malaguti Pauleira, pianista que por razões de familiares conviveu de perto com Jobim, chegando a frequentar a famosa casa do maestro na serra, em Poço Fundo, mas também com notável experiência de arranjador vocal, membro que foi do Céu da Boca, criador do Arranco de Varsóvia e da atual formação do MPB4. Com justiça, Augusto divide a autoria do disco com ele, já que o piano, assim como no Jobim original, não é simples acompanhador mas parte integrante da composição e também de sua interpretação: é ele que, junto com o jeito de refazer a música proposto pelo cantor, conduz a recriação rítmica e harmônica das canções. Um exemplo notável de como isso se dá está na faixa “O grande amor”, um lado B redescoberto neste disco. A música tem duas gravações clássicas: a primeira, de Mario Reis (para quem Tom e Vinicius fizeram a música em 1960), pelo estilo muito pessoal do cantor é mais puxada para o samba; e a de João Gilberto, gravada nos Estados Unidos com o saxofonista Stan Getz de maneira tão, mas tão cool, que ela vira uma canção quase camerística, com os traços do samba original bem esmaecidos. E aí vem Augusto e Pauleira e corajosamente retomam a música e dão, a meu ver, a interpretação definitiva, entre o samba e a canção, e fazem de “O grande amor” o que ele é na sua intenção original, um samba canção moderno.
Outro momento de qualidade, digamos, tipicamente shakespeariana, é “Demais”, o moderníssimo samba-canção de Tom e Aloysio de Oliveira que até então, embora com muitas gravações, foi consagrado por interpretações femininas como a original de Sylvia Telles e, principalmente, a de Maysa, que transformou a música num samba canção tradicional. Augusto não só dá sua visão “masculina”, como no arranjo de Pauleira a canção revela-se em toda a sua modernidade, sobretudo na passagem para a segunda parte, bossa nova total.
Um clássico villalobiano como “Sabiá”, não fosse originalmente escrita por Jobim para uma soprano, também passa por essa, digamos, “revisão” rítmica, vira sutilmente uma canção brasileira mais popular. Enquanto o que talvez seja o mais popular dos sambas de Tom e Vinicius, “O morro não tem vez”, ganha elementos que a valorizam como canção contemporânea (sem qualquer perda de espontaneidade, de grandiosidade de um samba popular). Outro samba, “Insensatez”, também passa por esse processo de revisão rítmica, e ganha novíssimas nuances de canção ressaltadas pela interpretação de Augusto, numa dinâmica muito própria deste trabalho.
Como se vê, Augusto e Pauleira não temeram desafios: encararam com aquele misto de respeito e irreverência (não, não são opostos), mas sobretudo com segurança e coragem músicas que ninguém deveria em sã consciência encarar, coisas como a valsa brasileira “Luiza” e a valsa-jazz em 6/8 “Chovendo na roseira”; ou os dois dolorosos clássicos sobre o fim do amor da dupla Tom e Chico Buarque, as duas músicas mais tristes que existem, “Retrato em branco e preto” e “Eu te amo”. É emocionante notar, nesses casos, de fato a desenvoltura com que Augusto passeia pela base harmônica criada por Pauleira, e como nos detalhes ele vai descobrindo novas nuances nas canções.
A dupla também não foge da face mais lírica da obra de Jobim, mantendo essa característica original mas, mesmo assim, propondo sutis revisões rítmicas. Senão ouçam, nesse espírito, “Derradeira primavera” (com seu novo arranjo vocal na introdução, especialidade de Pauleira) e, principalmente, “Sem você”. Nem foge de clássicos tão regravados, e aqui apresentados de forma totalmente nova, como “Se todos fossem iguais a você”, do repertório de “Orfeu da Conceição”, e o afro-samba avant la lettre “Água de beber”.
Neste movimento constante entre o respeito ao espírito das canções de Jobim e o desejo de renová-las, a única participação especial do disco não poderia ser outra, Ivan Lins, que como compositor, mas principalmente cantor e pianista talvez seja o mais “rebelde” e ao mesmo tempo apaixonado dos filhos de Jobim (a quem dedicou magnífico disco, em 2001, “Jobiniando”, misturando temas de Tom com suas próprias músicas naquele espírito). Como um presente a Augusto, Ivan Lins recria harmonicamente o clássico “Amor em paz” naquele espírito do piano de Jobim, acariciado, atento às mínimas nuances, como o próprio Tom fazia quando recriava canções alheias.
Augusto não chegou neste magnífico trabalho por acaso. Figura rara na música brasileira contemporânea, ele é um – e vamos à palavra exata – cantor. Apenas isso, o que não é pouco. Como foram o citado Agostinho dos Santos, o falecido Emílio Santiago, ou um Zé Luiz Mazziotti, que continua firme por aí. Augusto segue essa linhagem de cantores homens, de vozes masculinas de bonito timbre, mas que gostam de trabalhar musicalmente cada canção, detalhes de arranjos, divisões rítmicas etc. E também de escolher com cuidado o seu repertório. Não por acaso, em seus mais de 20 anos de carreira, dedicou trabalhos a reler grandes compositores brasileiros, como em “Augusto Martins canta Djavan” (2002); “Violão, voz e Zé Keti” (2013), em parceria com o violonista Marcel Powell; e, mais recentemente, “Ismael Silva: uma escola de samba”, gravado com o violonista, compositor e cantor Claudio Jorge. E mesmo nos seus outros quatro discos solo, de repertório brasileiro variado, o trabalho de Augusto é marcado por isso, pela qualidade óbvia do repertório mas pelo trabalho cuidadoso em cada canção.
Neste sentido, chegar ao repertório de Jobim, depois de ter passado por Djavan, Zé Keti e Ismael, pelo rico cancioneiro brasileiro do passado e do presente, foi uma decisão típica de ator Shakespeariano: chegou a hora de encarar o bardo da música brasileira, o mestre dessa linguagem. Para isso, como disse Nelson Rodrigues de Antônio Callado, era preciso “o equilíbrio, a serenidade, a disciplina do inglês utópico”. E, acrescente-se a isso, a beleza da voz, a bossa e, principalmente, o amor que Augusto Martins tem por esse cancioneiro que aqui se celebra e reinventa.
Ouça “Piano, Voz e Jobim”:
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