Brasil
‘Uma via para sair da escuridão’: Ney Matogrosso lança o álbum ‘Nu com a Minha Música’
Desde que surgiu à frente da explosão dos Secos & Molhados, em 1973, Ney Matogrosso passou a representar a liberdade personificada, um símbolo de insubmissão artística e comportamental. Faz o que quer, como, onde, quando e com quem ele decidir. Um pássaro em voo constante. Torna-se especialmente impactante para um artista com essa personalidade o isolamento a que todos fomos submetidos no último ano e meio, presos em casa e sem grandes perspectivas de saída. Criar era questão de vida, de voo.
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O álbum Nu Com a Minha Música (Sony Music) é resultado desse período. Mais do que um retrato desses tempos sombrios, o trabalho representa um mecanismo de libertação. Ou, como define o cantor, uma via para sair da escuridão. É um projeto especial na trajetória de Ney Matogrosso em muitos aspectos, portanto. Emocionais, artísticos, afetivos.
O gatilho que deu início ao trabalho foi disparado no final do ano passado, em meio à prostração geral em que todos caímos. Ney sentiu que precisava construir sua própria ponte de saída daquele clima macabro que a pandemia e suas péssimas notícias geravam diariamente. Sem a possibilidade de fazer shows, um álbum de estúdio era o melhor caminho. Foi em busca das listas onde anota, desde sempre, as canções que pretende um dia trazer para seu universo. Trata-se de um repertório que ele conheceu na voz de outros intérpretes e que o atingiram de imediato, tenham elas vindo da Era do Rádio ou de um compositor da novíssima geração. Em comum, essas músicas prezam por um discurso afinadíssimo com o que Ney desenhou em seus quase 50 anos de carreira fonográfica – de novo, a liberdade à frente de todas as coisas, não importa o tema ou o gênero da canção.
Quando concluiu que tinha as 12 faixas do álbum definidas, Ney Matogrosso foi entender os próximos passos dessa produção tão peculiar, muito diferente de todas as que fez no passado. Por razões óbvias, encontros com os músicos, preparações presenciais ou quaisquer outros tipos de aglomeração estavam descartados. O processo teria que ser um tanto mais solitário, feito remotamente, cada um em seu lugar seguro. Ney tirou os tons pelo telefone, combinou arranjos à distância e chegou às gravações das vozes sem nenhum ensaio. Tudo muito novo. Mas, se por um lado o método trouxe esses entraves logísticos, por outro abriu condições para que o álbum não tivesse que ficar restrito a apenas um estúdio, uma banda, um produtor, como costuma acontecer em tempos de normalidade. Sob essa prerrogativa, Ney foi atrás dos quatro produtores com quem vem trabalhando mais nos últimos tempos. Dividiu o repertório em quatro e entregou um trio de canções para cada um: Sacha Amback, Marcello Gonçalves, Ricardo Silveira e Leandro Braga. Também deu carta branca para que usassem as formações que achassem mais adequadas.
Nu Com a Minha Música é especial também por essas razões, já que o modo de produzir arte modifica necessariamente sua estética. As cores se abriram. Se há no álbum momentos densos de voz e piano, há também o Carnaval e a sacanagem em arranjos grandiosos. Toda essa diversidade criou um roteiro que mistura ficção e memória, como aconteceu também nas melhores obras geradas nesse período pandêmico. Como vimos, o clima tenso da pandemia fez com que nós, os recolhidos, nos voltássemos intensamente para dentro das nossas cabeças. E a música foi quem muito nos acolheu nesses tempos de introspecção. Todo esse sentimento está espelhado no repertório final do álbum de Ney.
Um grande exemplo desse nó que amarra música e memória, enriquecendo uma e outra com novos significados, se dá em “Quase um Segundo” (Herbert Vianna). Desde que ouviu no rádio pela primeira vez a hoje clássica balada pop dos Paralamas do Sucesso, em 1988, Ney se interessou por ela. Mas as razões pessoais para regravá-la se ampliaram infinitas vezes quando ouviu Cazuza dizer que essa era a única canção que ele tinha inveja de não ter composto. É, de fato, a mais cazuziana entre as baladas de Herbert. O próprio Cazuza regravou a música em seu último LP, “Burguesia” (1989), com interpretação dilacerante. É nessa gravação que se baseia a versão de Ney. O arranjo de Ricardo Silveira realça o clima blues que tanto agradava Cazuza desde os tempos de Barão Vermelho.
E a memória individual se expande para memória afetiva do Brasil em “Espumas ao Vento” (Accioly Neto). Ney ouviu a famosa gravação de Fagner ecoando como um hino, tantas vezes e em tantos lugares do país, que logo entendeu haver algo muito profundo ali, desses fenômenos que só acontecem com as mais grandiosas canções românticas. O arranjo de Leandro Braga encontra o tom exato para a voz de Ney, como se ele a tivesse pescado no repertório dramático de Ângela Maria, ambiente tão caro ao intérprete.
Também é de Braga o piano que soa como instrumento solitário em “Noturno”, composição de Vitor Ramil lançada pelo autor no álbum “Longes” (2004). A pedido de Ney, Ramil escreveu uma nova estrofe: “Eu vivo cada segundo/ De cada hora despida/ Tudo é nudez e passagem/ Tudo é visagem e amor/ Eu ouço cada palavra/ De cada frase não dita/ A minha boca era tua/ A tua boca era minha”. O cantor queria que a letra trouxesse à tona o encontro sexual-amoroso que na versão original estava apenas insinuado.
Se na canção de Ramil a sexualidade é abordada em um bordado lírico de imagens e palavras, em “Faz um Carnaval Comigo”, de Jade Baraldo e Pedro Luís, o tema é tratado no aqui e no agora, descrevendo a pegação em tempo real: “Não quero saber de hora/ Tá rolando, tá agora/ Te devoro, me devora/ Amanhã vê no que deu”. A música já havia sido gravada por Pedro, Jade e Batman Zavareze em 2019. Na versão de Ney, contou com a produção de Ricardo Silveira e um ótimo naipe de sopros.
Pequena obra-prima escrita pela dupla Itamar Assumpção/Alice Ruiz e lançada por Alzira Espíndola no álbum “Amme”, de 1991, “Sei dos Caminhos” estava no baú de Ney Matogrosso desde então esperando sua hora para ser regravada. Marcello Gonçalves fez o belíssimo arranjo em que o universo tão particular de Itamar é sutilmente citado na costura fina entre as frases do clarinete de Anat Cohen e a marcação rítmica das palmas. Também ficou nas mãos de Gonçalves e de Cohen a missão de criar a base de “Sua Estupidez”, standard de Roberto e Erasmo Carlos. Ney imaginou dizer a letra como um desabafo dito na cama, ao pé do ouvido. Nesse clima, a nova versão foge da conotação de fim de romance que regia as gravações de Roberto, de Gal Costa e de Ná Ozzetti, por exemplo.
O produtor Sacha Amback cuidou das duas canções mais novas do pacote. Lançada em 2019, “Estranha Toada”, de PC Silva e Martins, abre o álbum de estreia do jovem cantor e compositor pernambucano Martins e foi descoberta por Ney Matogrosso em uma das festas na casa do empresário Zé Maurício Machline, onde o som sempre apresenta surpresas. A intensidade da letra capturou rapidamente a atenção de Ney e deu a tônica do arranjo épico, ornamentado com metais e cordas. “Boca” também é novinha. Foi lançada em 2020 por Rafael Rocha com participação do próprio Ney. No dia em que colocou voz na faixa do álbum de Rafael, o convidado cravou: “Essa eu vou trazer pra mim”. Trouxe, mas com modificações. Como a composição original havia sido pensada para duas vozes, sem respiro entre um verso e outro, Ney pediu ao autor uma edição na letra. Rafael pescou as melhores frases e criou outras especialmente. Um quarteto de sopros engrandece o arranjo.
Essas oito gravações inéditas de Ney Matogrosso se somam às outras quatro lançadas em um EP em 1º de agosto (dia que Ney completou 80 anos), completando as 12 faixas de Nu Com a Minha Música.
Com arranjo de piano e violoncelo criado por Sacha Amback, “Mi Unicornio Azul” revela-se absolutamente atual, sobretudo pelo discurso. A música foi escrita por Silvio Rodríguez em 1982 e lançada no álbum “En Vivo”, que o autor dividiu no mesmo ano com Pablo Milanés – como ele, um expoente da Nova Trova Cubana. Os versos aparentemente surrealistas parecem ocultar uma mensagem homoerótica, de um amor vivido (e proibido) entre dois homens, algo impensável em Cuba e naquele período. O unicórnio, como se sabe, é um símbolo ligado ao imaginário gay.
Três décadas mais nova é “Se Não For Amor, Eu Cegue”. Ney Matogrosso também conheceu essa parceria de Lenine e Lula Queiroga na casa de Zé Maurício Machline. Em algum momento da tarde, o shuffle do som os levou à gravação original de Lenine, lançada no álbum Chão (2011). Ney teve que interromper os passos de dança do anfitrião: “Zé, que música é essa? Ele está dizendo ‘se não for amor, eu cegue’? É isso mesmo? Quero gravar isso”. Mais uma para o baú que viria à tona agora. O arranjo que Ricardo Silveira preparou para a versão de Ney Matogrosso tem Renato Neto no piano, Claudio Infante na bateria, Zero na percussão e Liminha no baixo.
Com letra de Paulo Coelho, “Gita” é um clássico absoluto do repertório de Raul Seixas. O clima épico da versão original é mantido aqui, sob a produção de Leandro Braga, que também toca o piano. Leandro criou um grandioso arranjo de sopros e cordas. E Ney manteve inclusive a fala de Raul na introdução: “Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando/ Foi justamente num sonho que Ele me falou”.
Faixa que dá nome ao álbum, “Nu Com a Minha Música” é uma composição de Caetano Veloso lançada no LP Outras Palavras (1981). Sua letra remete às excursões que tantos artistas da música brasileira fizeram pelo interior paulista até pelo menos meados dos anos 1980. Ney tem nítidas as memórias de estrada que Caetano descreve tão bem. Lembra especialmente da turnê do LP Bandido (1976), nos primeiros anos de sua carreira solo, quando percorreu justamente esse circuito. Na nova gravação, a canção ganha divisão rítmica mais acelerada sob a produção de Marcello Gonçalves.
Todo esse movimento incomum de Nu Com a Minha Música acabou por fazê-lo cumprir à risca a máxima nietzschiana que afirma: temos a arte para não morrer da verdade. A verdade não nos servia, era preciso inventar outro roteiro. E o álbum de Ney Matogrosso deu, primeiro, o caminho para que seu intérprete escapasse da morbidez da pandemia, florescendo pela música. Agora, mostra a estrada para nós, seus ouvintes, colorindo o percurso de volta à vida um tanto mais ensolarada que está por chegar, logo ali.