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Soldados do Araguaia: Documentário expõe faceta cruel de uma guerra quase anônima
A Guerrilha do Araguaia foi um movimento guerrilheiro criado pelo Partido Comunista que se instalou na região amazônica na década de 60, às margens do Rio Araguaia, com o objetivo de fomentar uma revolução socialista, e que passou a ser militarmente combatido pelas Forças Armadas a partir de 1972 – um conflito que ficou praticamente incógnito da população brasileira na época, com informações mais detalhadas vindo à tona apenas 20 anos depois.
Este documentário, dirigido por Belisario Franca, não tem como objeto o conflito como um todo, fazendo um recorte em torno da narrativa dos soldados recrutas de baixa patente, da própria região, que foram convocados pelo Exército Militar para atuar no combate: homens de baixa instrução que, segundo eles próprios, alistaram-se para receber um certificado, no que servir ao exército era considerado uma honra, mas que, ao serem convocados para a missão, totalmente desinformados e despreparados, foram atirados a uma situação de “um laboratório das experiências humanas mais radicais”, como é dito em certo momento do filme.
O filme tem início com tomadas da região junto a relatos em off, o que funciona como um prólogo, até o momento em que a câmera surge em quadro e conhecemos, objetivamente, os ex-soldados, agora sexagenários, que vão compartilhar suas histórias e impressões do que viveram no conflito. Seus depoimentos compõem a espinha dorsal do filme e, à medida em que este caminha, vamos conhecendo individualmente aqueles personagens. Isso se deve a uma eficiente montagem alternada e à disposição de expressão dos entrevistados, que não se privam de falar sobre nenhum assunto – e certos relatos envolvendo tortura interna são particularmente impactantes.
O realizador segue entremeando as entrevistas com imagens da natureza local, florestas e rios – imagens que recebem um tratamento visual escurecido e sombrio; ou seja, o que se pretende não é ressaltar a beleza natural da paisagem, mas evidenciar aquele espaço como palco para as situações de barbárie que estão sendo contadas. A trilha sonora de arranjos soturnos também busca contribuir para este efeito. É uma forma de dar um acompanhamento atmosférico aos depoimentos, o que é feito de forma bem dosada e sutil, sem ofuscar as vozes depoentes – e veja que até mesmo fotos de arquivo são mostradas com parcimônia.
Após um tempo em que os ex-combatentes entrevistados já estão estabelecidos para o espectador, o filme começa a inserir falas de especialistas e psicólogos da chamada Clínica da Testemunha, que trata deste tipo de caso. E a realização organicamente se aprofunda na questão do trauma que ficou naqueles homens, sendo que frequentemente os entrevistados caem na emoção no meio de seus relatos – “é como se a pessoa se deslocasse no tempo com o relato”, comenta um dos especialistas. Fica também evidente a proposta do cineasta em fazer uma justaposição da subjetividade dos ex-soldados em suas experiências com a visão acadêmica dos especialistas, voltada para a significação coletiva.
Soldados do Araguaia é um filme que se destaca pela objetividade narrativa, colocando, de forma segura e empática, um holofote sobre um combate histórico pouco conhecido a partir da perspectiva de homens que o vivenciaram de modo brutal, e que hoje sofrem com os fantasmas daqueles anos e o descrédito geral – um desvelamento de mais uma face obscura da história recente do Brasil.
O filme estreia nos cinemas nesta quinta-feira, dia 22/03.