“Deus me perdoe por querer/ que Deus me livre e guarde de você”. O verso de “Reza”, música-título do último álbum de estúdio gravado por Rita Lee e Roberto de Carvalho, de 2012, já diz a que veio. A composição é um hit-assinatura que ficou marcado para sempre no cancioneiro: a música se tornou número 1 e esteve no topo das mais tocadas por semanas. O álbum finalmente é celebrado com um aguardado relançamento em LP, pela Universal Music, que vem caprichado. Pela primeira vez em disco duplo e, portanto, com todas as músicas que vinham no CD, ele chega nas cores azul e vermelha. A capa original, com a mandala de Rita, é gatefold, com encarte e envelopes.
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O título soa perfeito para um disco cheio de (claro!) rezas, hinos pagãos, ladainhas, divagações e retratos da vida cotidiana. “Pistis Sophia” dá o tom ao abrir o disco com uma atmosfera esotérica, sobrenatural e com alguma estranheza. A sobreposição de vozes de Rita nos apresenta diversas mulheres, com sotaques, timbres e emoções distintos. É uma daquelas canções em que nos deparamos com o enorme talento de intérprete de Rita.
“Reza”, o grande sucesso do álbum, se tornou trilha sonora da novela “Avenida Brasil”. Uma curiosidade: a letra é realmente uma oração que Rita criou e que ficava na mesa de cabeceira da cama dela. O clipe também é digno de nota: ela passeia por uma floresta. Aqui e ali, seres do bem e do mal vão surgindo em seu caminho. No meio da canção, uma aparição pra lá de bem-vinda: Roberto e sua guitarra ajudam a espantar o mau-olhado.
Mais mundanas, “Tô um lixo” e “Vidinha” trazem uma visão um tanto quanto desiludida da rotina da vida, com críticas mordazes e pitadas de ironias autobiográficas. “Vidinha besta/ Vidinha furreca/ Vidinha chinfrim/ Vidinha de merda”, brada no refrão da segunda, rockão delicioso.
O brilhante álbum é embalado com o que há de mais clássico na dupla Lee-Carvalho. Certa vez, conversando com Rita, ela me disse que considerava esse disco o “casamento entre a sujeira e a sofisticação”. “Divagando”, misteriosa, é uma joia escondida. Ainda será descoberta. “Quanto tempo ainda tenho no mundo? Eons? Milênios? Milésimos de segundo?”, pergunta Rita numa suingada e inspiradíssima canção em que Roberto toca praticamente todos os instrumentos: guitarras, violões, teclado, baixo, além de fazer as programações eletrônicas e loops.
Responsável por grande parte dos instrumentos, Roberto ainda assina a produção junto de Apollo Nove, o coprodutor. A concepção é de Rita & Roberto, assim como a composição de quase todas as músicas, com exceção de “Pistis Sophia”, “Bixo Grilo”, “Bagdá” e “Bamboogiewoogie”, que são só de Rita.
“As Loucas” é um rock pesado com temática feminina/ feminista contra a calhordice de muitos homens. A cara da Rita: “Eles amam as loucas/ Mas se casam com outras”. Delícia pura. Na linha “só podia sair da cabeça genial de Rita” também está “Bixo Grilo”. “Sou bixo grilo sim/ Não me queixo/ Se você gosta de mim/ Eu deixo”, entrega em um vocal tesudo. A volúpia de Rita, que deu o tom a vários discos clássicos da dupla, também aparece em “Rapaz”: “Serei sua escrava, sua dominatrix/ Sua namorada, sua bitch”. Uau!
As supracitadas “Bagdá” e “Bamboogiewoogie” mostram bem a veia tropicalista de Rita e a verve da dupla de passear por estilos musicais sem pudores. O resultado? Uma não poderia ser mais diferente que a outra – mas igualmente geniais. “U Big-Ben bate bambu gui úgui/ Bumba meu boi bon bini bom de gudi/ Orangotango bolero merengue/ Tupini-King-Kong tem dengo tem dengue”, canta Rita na viajandona “Bamboogiewoogie”. A viagem de “Bagdá” é outra: fazendo amor em um tapete voador e recheada de piadas e trocadilhos, em uma produção de Roberto que nos encaminha a locais muito próprios de um mundo criado por Rita nessa canção.
O bom humor de “Bagdá” se junta a mais duas impagáveis: “Tutti-Fuditti”, uma “homenagem, pero no mucho” à Rita Pavone brincando com palavras em italiano, e “Gororoba”.
A instrumental e psicodélica “Pow” fecha o disco com o casamento entre o theremin de Rita com a guitarra de Roberto. Gravado majoritariamente no estúdio de Rita e Roberto na “casa no mato”, na grande São Paulo, o álbum merece ser celebrado junto dos grandes clássicos da dupla fundamental para a música. Afinal, o pop/ rock brasileiro pode ser dividido em ARR e DRR, antes e depois de Rita & Roberto.
Amém!
*Guilherme Samora é jornalista, editor e estudioso do legado cultural de Rita Lee
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